O Testemunho que Falta

domingo, 7 de dezembro de 2008


Uma causa do declínio da qualidade da experiência religiosa entre os cristãos nos dias atuais é a negligência da doutrina do testemunho interno.


Sacudindo os pés para ativar a circulação, e articulando as mãos para elevá-las, irrompemos do longo período de congelamento teológico, mas a influência dos anos gelados ainda é sentida entre nós em tal extensão que as palavras testemunho, experiência e sentimento são evitadas cautelosamente pelos mestres evangélicos medíocres. A despeito da inegável indiferença da maioria de nós, ainda tememos que, se não nos mantivermos a nós mesmos sob cuidadosa vigilância, seguramente perderemos a nossa dignidade e nos tornaremos ululantes fanáticos na próxima semana a estas horas. Fazemos uma verificação das nossas emoções dia e noite para não nos tornarmos super-espirituais e não provocarmos censura à causa de Cristo. O que, para a maioria de nós, é tudo, se posso dizê-lo assim, quase tão sensato como estender um cordão policial em torno de um cemitério para impedir uma demonstração política feita por seus ocupantes.

Nós que sustentamos as doutrinas do Novo Testamento nestes tempos, cremos que fazemos parte da linhagem que descende diretamente dos apóstolos e que somos o verdadeiro fruto da Igreja Primitiva. Bem, eu ceio que há hoje alguns que pertencem à família de Deus, que são da geração escolhida e constituem o sacerdócio real e a nação santa de que fala Pedro. Acham-se espalhados entre as igrejas, nas quais, podemos admiti-lo também, muitas vezes são uma fonte de embaraço para a heterogenia multidão que compõe o rol de membros. Isso é uma realidade. Mas, admitir que todos os evangélicos pertencem à sucessão apostólica é otimismo demais, para favorecer-nos. Crer assim sugere inquietante paralelo com aqueles escribas e fariseus dos tempos de Jesus que tinham a pretensão de descender espiritualmente de Abraão porque podiam demonstrar que eram seus descendentes carnais. “Somos descendência de Abraão”, alardearam. Jesus replicou-lhes fazendo uma distinção. “Bem sei que sois descendência de Abraão”, disse-lhes. “Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão”.

À semelhança dos fariseus, podemos errar gravemente supondo que somos filhos de Deus porque defendemos o credo de Deus. É mais que certo que uma coisa não se segue à outra. Não é a descendência física que classifica alguém como verdadeiro filho de Abraão, pois Abraão é o pai dos que têm fé, e fé não se transmite pela procriação natural. Assim, não é a descendência confessional que prova que somos verdadeiros filhos do Pentecoste, mas a identidade de espírito com aqueles sobre cujas cabeças pousaram as línguas repartidas, como de fogo.

Uma das marcas distintivas daqueles primeiros cristãos era um resplendor sobrenatural que se irradiava do seu interior. O sol brilhara nos corações deles, e o seu calor e luz tornavam desnecessárias quaisquer outras fontes de segurança. Tinham o testemunho interno. Sabiam com percepção imediata que não requeria nenhuma manipulação da evidência para dar-lhes sensação de certeza. Grande poder e graça grandiosa marcaram as suas vidas, capacitando-os a regozijar-se por sofrer vexame pelo nome de Jesus.

É óbvio que o cristão evangélico do tipo comum hoje em dia não tem esse resplendor. Os esforços de alguns de nossos mestres para animar os nossos espíritos desfalecidos são fúteis, porque esses mesmos mestres rejeitam o fenômeno que produziria naturalmente a alegria, o saber, o testemunho interno. Em seu estranho medo das emoções religiosas, perderam de vista passagens das Escrituras que ensinam sobre esse testemunho, como, “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito”, e, “Aquele que crê no Filho de Deus tem em si o testemunho”.

Agora substituímos o testemunho interno pelas conclusões lógicas deduzidas de textos. A conversa entre um interessado e um obreiro numa sala de aconselhamento evangélico segue mais ou menos este curso: “Você quer que o Senhor o receba e o torne Seu filho”? “Quero”. “Pois bem, leia isto: ‘O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora’. Crê nisto”? “Creio”. “Agora, se não o lança fora, o que faz Ele então”? “Acho que me acolhe”. “Amém. Agora Ele o recebeu e você é Seu filho. Por que não fala disso a outros”? Assim o confuso interessado força um sorriso amarelo e dá testemunho de que se converteu a Cristo. É sincero e tem boa intenção, mas foi guiado por caminhos errados. Foi vítima de uma lógica destituída do Espírito. Sua segurança repousa num movediço silogismo. Não há testemunho algum, nenhum conhecimento obtido diretamente, nenhum encontro com Deus, nenhuma consciência de transformação interior.

Onde houver um ato divino na alma, haverá sempre uma percepção correspondente. Este ato de Deus valida-se a si próprio. Constitui a evidência de si mesmo e se destina diretamente à consciência religiosa. Pode ser que existam abundantes provas externas de que uma obra se processou no interior, e nisto a razão pode regozigar-se; mas essas provas não podem ser suficientes para garantir que uma obra salvadora foi realizada. O que quer que possa ser julgado pela razão está sujeito às limitações e aos erros da razão. Deus espera assegurar-nos que somos Seus filhos de um modo que elimina a possibilidade de erro, a saber, pelo testemunho interno.

Num dos mais triunfantes hinos jamais escritos, “Arise, My Soul, Arise” (“Ergue-te, Minha Alma, Ergue-te”), de Charles Wesley, ocorrem estes versos:

“Responde ao sangue o Seu Espírito; nasci de Deus, é o que me diz”.

Para os adeptos da salvação pela conclusão lógica, essa linguagem é pura heresia. Se é heresia, corro a unir-me a tão esplêndido herege. E queira Deus mandar-nos muito mais.

A.W. Tozer

Fonte: Capítulo 2 do livro “O Poder de Deus” – Editora mundo Cristão

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